O que assusta é pensar que, quem sabe, o desejo de morrer
também more, encolhido, dentro da gente. Não tenho
medo de andar de avião. Pelo contrário, sinto-me possuído
de uma grande tranqüilidade ao olhar para a terra, lá das
alturas. Mas meus sentimentos são diferentes quando me
debruço sobre a sacada de um apartamento do 18° andar…
Estranho, não? Pois não é muito mais seguro o edifício?
Por que o medo? Onde a diferença? Não está na altura.
Está no fato de que no avião estou protegido contra o meu
desejo. Não posso saltar, ainda que queira. Mas, na sacada
do edifício, sinto que há apenas o meu desejo a me separar
da morte. É muito fácil…
(Rubem A. Alves)
Há alguns anos não tão distantes, uma nova proposta passou a fazer parte da sociedade a partir das campanhas de cuidado, prevenção e atenção à saúde, tratando de alguns temas pertinentes ao cotidiano da realidade das incidências de maior relevância e demanda aos serviços prestados pelas instituições de cuidados à saúde, não só partindo da Organização Mundial de Saúde, mas com o tempo sendo agregado com sugestões de outros órgãos e instituições, inclusive Conselhos de Classe das mais diversas categorias.
Isso se deu devido ao considerável impacto causado na sociedade após a Campanha Outubro Rosa, voltada para as Políticas referentes ao Câncer de Mama; após, os meses foram ganhando suas cores e devidos significados.
Como possivelmente você já deve ter se deparado nos últimos dias, o mês de setembro especialmente foi destinado a trazer à reflexão duas afetações presentes na realidade da nossa sociedade. Sendo o único mês com duas cores, setembro foi colorido por: Amarelo e Verde. A cor Verde, desde 2014 traz à nossa reflexão a Doação de Órgãos: “Doe órgãos, a vida continua”. Não que não seja pertinente, ou não possamos levantar uma discussão sobre essa ação tão necessária, mas não é o foco. Só compartilho uma informação com você: A doação de órgãos salva muitas vidas, e não é suficiente você simplesmente registrar no seu documento de identidade que você é doador de órgãos; caso você tenha tal desejo, deixe isso muito bem comunicado aos seus familiares, pois em última instância quem decidirá sobre uma possível doação serão eles, se eles não permitirem, nada feito.
Pretendo falar do Amarelo, o suicídio.
Inicialmente gostaria somente de apresentar alguns fatores que justificam a necessidade de uma discussão referente ao suicídio: Você sabia que há cada 20 segundos, no mundo, uma pessoa comete suicídio e obtêm sucesso no ato? A cada três pessoas que tentam suicídio uma delas consegue consumar o ato? Que provavelmente você conviva com alguém ou algumas pessoas que ou já fizeram uma tentativa de suicídio ou pelo menos já pensaram na possibilidade? Vamos quebrar os tabus desta discussão tão pertinente para a garantia da vida, e expandirmos esta discussão. Precisamos saber que Ideação e Comportamento Suicida estão entre as mais sérias e comuns emergências psiquiátricas.
“O Tabu da Morte”, que com sua desenvoltura silenciosa desempenha considerável significação enquanto característica presente no papel social que nos molda no mundo. Quando falamos em morte, sofrimento, vontade de morrer, tais palavras só se apresentam de maneira menos incômoda quando estamos em uma cerimônia fúnebre. Quando uma família e amigos são surpreendidos, com alguém dentre eles, que se mata, comentam cautelosamente ou intimamente: “Ninguém percebeu”? Passe a observar que esta pergunta antecede àquela, “porque eu não desconfiei”?
Assim, tratando-se de pensarmos o fator cultural em sua descompensada complexidade, num repente, a vida é impactada – estabelecendo de maneira um vazio que incomoda – devido à notícia de um suicídio.
Há autores que compreendem o aspecto cultural como algo que diretamente esteja relacionado ao sofrimento do sujeito; alguns outros, afirmam ainda que enxergar a cultura como uma prescrição – ou uma receita de bolo, pensemos assim – nos limita a considerar as coisas como devendo sempre se constituir de uma boa aparência, voltar-se ao bem-estar, e exigir que vivamos a partir da lógica de inexistência do sofrimento, impondo a todos a impossibilidade de que sintam sua dor, especialmente àqueles que se encontram em um sofrimento particularmente insuportável para si.
Com isso, fatores como sofrimento, aceitação e tolerância, ganham uma relevância e investimento muito baixo enquanto aspecto a ser considerado. Com isso, estes sujeitos sentem-se fracos, acreditando que estão sendo injustiçados ou impossibilitados de qualquer forma e espaço de compreensão.
Uma pessoa, no momento em que passa a acreditar que não é forte o bastante para ser agente resolutivo de um problema, torna-se incapaz, inclusive aos olhos dos que o rodeiam; ou pensemos em alguém que seja tomado por uma expectativa de que uma determinada situação não mudará enquanto ele próprio der conta de resolver um problema que seja visto a partir de sua dimensão como algo interminável, mesmo já tendo utilizado as mais diversas estratégias; e ainda, um indivíduo que por não poder suportar uma dor emocional de que uma certa situação ou fato estejam produzindo, o levam a acreditar que aquilo é da ordem do intolerável.
Um indivíduo que carrega marcas, tais quais: traumas cerebrais, violência, nutrição inadequada na infância, um histórico familiar em que se encontrem históricos de doenças mentais e o próprio suicídio, tendem a apresentar um risco aumentado de passagem ao ato. É de extrema relevância começarmos a nos atentar para determinados fatores do cotidiano que podem desencadear o suicídio: eventos de vida com circunstâncias estressoras – desemprego, problemas interpessoais, timidez, sentimento de não enquadramento estético, dentre milhares -, os levam ao sentimento de menos valia; nunca compare o tanto que o outro sofre diante de uma situação a partir da leitura do quanto você lidaria com aquela situação; o peso é da ordem do singular, coisas que nos parecem simples podem exigir um esforço inalcançável para o outro. O mais importante é ele descobrir que sim, ele dá conta.
O manejo em situações de suicídio deve se dar como já dito aqui, a partir de uma percepção multifatorial, e em um trabalho de assistência e cuidado ao paciente inserindo em vários níveis de atenção à saúde, vejamos de uma maneira esquemática como funcionaria o fluxo de atenção e cuidados ao paciente que apresenta um quadro de suicídio:
Inicialmente a abordagem se dá por entrevista clínica em que se avalia os fatores de risco e os fatores de proteção.
Fatores de Risco: tentativas prévias de suicídio; transtornos psiquiátricos; história familiar; desesperança/impulsividade; gênero; estado civil; ocupação; doenças físicas e traumas na infância.
Fatores de Proteção: Suporte Social; Suporte Familiar; Gestação; Maternidade; Religiosidade; Estilo de Vida Saudável; Habilidades em resolver conflitos; Acesso restrito a métodos – por exemplo, armas de fogo
Após: Avaliar a Intenção/Ideação (pensamento ininterrupto de cometer o ato); Plano; e grau de Letalidade do método. A partir disso concebe-se a Estratificação de Risco, que se subdividirá em três níveis: Baixo Risco; Médio Risco; e Alto Risco.
Baixo Risco: – Pensamentos suicidas ocasionais, ausência de planos > Procedimento: O paciente é encaminhado ao profissional da saúde mental ou médico; são realizadas pela atenção básica, visitas ao paciente com intervalos regulares.
Médio Risco: – Pensamentos Suicidas; – Plano de ação, mas sem caráter imediato > O paciente é encaminhado a um psiquiatra ou médico, e se agenda uma consulta o mais breve possível.
Alto Risco: – Pensamentos suicidas; – Plano suicida; – Meios de Execução, com caráter imediato > O paciente é direcionado imediatamente à uma hospitalização.
Vale ressaltarmos que tais procedimentos envolvem vários autores e todos ocupam lugar de protagonismo perante a situação de sofrimento do paciente. A importância dos múltiplos contextos acessíveis ao paciente, incluindo família, amigos próximos, e a instituição de saúde de melhor vínculo pelo paciente, resultará num sucesso mais garantido à resolução da questão do paciente perante seu quadro.
Como último ponto de reflexão, trago à discussão um estigma muito presente no processo de lidar com este quadro e infelizmente atravessando o tratamento, em muitos momentos acarretando perdas que poderiam ter sido evitadas caso fosse buscado pela sociedade se informar um pouco mais a respeito deste acometimento psíquico.
Suicídio não é falta de Deus!
Existem diversos casos em que o ato suicida se deu por pessoas que não necessariamente apresentavam quadros depressivos de base, e aproveito este momento inclusive para dizer que Depressão também não significa que o sujeito não possua construído para si algum referencial de Deus. Todos estão em algum momento sujeitos a adoecerem psiquicamente. O próprio Jesus teve profundos sentimentos depressivos por causa da angústia.
Uma considerável maioria de pessoas que fazem uma tentativa de suicídio não possuem a clara intenção de dar fim às suas vidas; simplesmente desejam escapar de uma dor insuportável que sentem. Se pegarmos como exemplos referenciais bíblicos, assim se deu com pessoas como Moisés, Elias e Jonas, aclamados como heróis da fé, que embora não atentando contra suas vidas, desejaram a morte na intenção de escaparem da tristeza ou de uma situação estressante. Mesmo assim a vontade de viver quase sempre surge frente ao desejo de autodestruir.
Outras circunstâncias causais para os atos suicidas podem envolver no cenário, o consumo de álcool ou outras drogas, podendo degenerar conexões cerebrais gerando sinapses nocivas no cérebro, devido ao descontrole mental e emocional; doenças; cobranças sociais; medo; ansiedade; inadimplência; fracasso; rejeição; humilhação; bullying´s; abusos; altos padrões de consumo; sucesso e beleza; relacionamentos e famílias que se destroem; há uma vasta lista de duras realidades em uma sociedade como a nossa que apresenta padrões tão invertidos. Sendo fácil não se dar bem em um mundo cruel tal qual estamos vivendo, inclusive onde um deseja devorar o outro.
Se pensarmos nas instituições religiosas, estas poderiam compreender que podem contribuir na valorização da vida, propondo sua proteção e realização plena, devido ao ponto em que tem como chamada a atuação através de representações de amor em sua espiritualidade, ensinamentos e suas solicitudes coordenativas de líderes; podem prestar apoio às várias formas de ajuda já existentes, dentre elas a assistência médica. Percebemos que há um receio em tratar deste assunto na intenção de que se evite levar as pessoas a um perigoso envolvimento com o tema, e que isso poderia acarretar um aumento dos riscos. Não discutirmos sobre o suicídio, isso sim, aumenta o risco de presenciarmos mais perdas de vidas.
Fatores como a disponibilidade de um sistema de crenças que proporcione algum sentido à vida e ao sofrimento, regras referentes a estilos de vida saudável, sobretudo apoio social de grupos religiosos podem se tornar mecanismos na resolução ou melhor adesão ao tratamento. Não podemos deixar de citar que determinados contextos religiosos específicos podem atuar tanto como protetores ou como mais vulnerabilizantes.
Aqui não tratamos de não significar a orientação religiosa para a vida e para a prevenção, no entanto, para intenção de propor uma busca de levar em conta outra percepção, melhor elaborada a respeito da complexidade deste problema tão particular e individual. Levando em consideração que há que se abrir à necessidade de serviços de saúde, inclusos na realidade de quem sofre.
Márcio Junio Fagundes do Vale
Psicólogo/Psicanalista
CRP 04/35602
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